sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Descrevaneio


A perfídia que se esconde em meu heteronômio me assombra,
Me assusta por ser charmosa,
Não por ser bela.

E quando esse sangue passa mais quente pela artéria,
Eu escrevo,
Me incomoda,
Me esfarela.

E cada má intenção sufocada vira tinta,
Carregada do mal das palavras que eu mesmo juntei.

Confesso, padeço em versos,
Em desventura submerso
No vão que inventei.

Alex Sandro Bambil de Lima

O Coveiro

Foto: Blog Tinta China - O blog da GRAFAR

Estava já havia uma hora na prazerosa atividade da leitura, lendo e deslendo sobre nada, e este nada lhe pesava as pálpebras. Furtivamente levantou-se e foi molhar o rosto na tentativa de afugentar de si o sono sorrateiro, fruto do cansaço que vem de noite; voltou com um ar renovado, até parecia que trocara as vestes, retornara com mais afã ao esconderijo do coveiro.
Fiquei no silêncio sepulcral das páginas corroídas e amareladas, entre ácaros e velhas traças, sob o olhar mórbido do coveiro bibliotecário. Levantei-me e, como não possuía naquela noite objetivos de leitura claros nem a mim mesmo, fui ao coveiro perguntar sobre um livro grande de fotografias pantaneiras que há muito não o via e, ele, com aquela vagarosidade spleen, parecendo “O Corvo” do Poe recitado à meia-noite no inverno, chovendo, com alguma música arrastada do Type O Negative de fundo musical, após um olhar para a pilha de livros que estava a sua esquerda, respondeu:
- Não está aqui, com aquela voz de mordomo sinistro do castelo; uma voz grave, porém fraca; era calvo, vivia com os óculos na ponta do nariz, era dono de um olhar lento, olhos de ressaca – por favor, sem dúvidas machadianas. Aqui refiro-me a ressaca de porre mesmo – contudo, nada escapava daquele olhar naquele ambiente de sussurros, intelectualidades, silenciosas leituras, ociosas leituras, sede de saber, pseudo-intelecualidades e lirismos comedidos.
Retornei com o livro de algum autor defunto nas mãos, decepcionado com o descaso do coveiro, eu estava, na verdade, fugindo de uma aula que me causava dores nos adjuntos abdominais; ao olhar para a janela do oráculo, com a alma alhures, fiquei a imaginar como seria se Gustavo Azuaga e eu tivéssemos, há algum tempo atrás, jogado aquele gato preto pela janela da biblioteca.
O plano era perfeito, o corredor estava solitário e o gato tinha o tamanho ideal para passar pela fresta da janela e cair no meio das grandes mesas de leitura. Porém, a poucos momentos da execução do plano, um vulto aparece acendendo um cigarro sabor câncer. Era ele: o coveiro, que aparecera em meio a fumaça do próprio cigarro; aquela fumaça lenta, como ele, parecia conhecer nosso intento de romper o silêncio e a harmonia no oráculo do universo pensante da sociedade.
Era o equilíbrio e a desordem, a teoria do caos bem ali. Todos ali, até a fumaça sabia a traquinagem academicista que estava por vir, ouso pensar que até o gato sabia, mas ficou tudo bem para o bichano, o coveiro jogou terra em nossa molecagem.
Fiquei escrevendo ao redor do sangue, lutando com palavras, imaginando crônicas, contos, romances, pensando em milhares de coisas que poderiam (ou não) serem feitas naquele momento, numa terrível dúvida digna de asno de Buridan, porém permaneci lendo e deslendo sobre nada, sob o olhar do coveiro bibliotecário, enterrando tesouros de reminiscências e tapando as covas que outrora eu mesmo cavei na alma.

Alex Sandro Bambil de Lima


Flores e Horrores




Ponta de caneta fere a pétala que era flor,
Planta rubra com sangue de espinho e dor.
Ver com languidez no olhar o céu toldar,
Todo cinza chumbo num segundo encharcar.

Vendaval envolve veias em vão,
Capcioso vento revolve poeira.
E a voz se vai sem canção,
Sorrindo na ironia ligeira.

Friamente frio foge do fogo;
E o inverno é tão bom quando escurece de novo.
Silêncio acalma devagar e a alma divaga,
É como vinho: é doce, mas embriaga.

Ponteiros vagarosos enferrujados,
Em ferros afiados desafia.
Música e momentos, pensamentos alados.
Dos horrores, de todas as cores flores faria.



(Alex Sandro Bambil de Lima)

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

O Xerimbabo de Tianastácia



Deixa-me ver... eram dois parentes que mais tarde adotaram um amigo, destes excêntricos pensadores. Dois da capital e um da floresta. Os três que vieram para a terra que “se não está perto do Sol está perto do inferno” – como pilharia um deles; lugar onde durante o ano faz calor, mormaço e uma semana de inverno, onde se vê mais estrelas e maior se vê a lua, onde timbú anda na rua, onde as capivaras pastam na esquina e às duas da manhã em frente de casa é só cair na piscina. E você não gosta de rimas fáceis, métricas mal feitas e prólogos longos? Tudo bem, nenhum dos três dormia cedo. Diversão e sobrevivência academicista é o nome do jogo.


Lembro-me bem daquela casa de corredor comprido, com crostas de cera vermelha pelos cantos, sobrepostas umas sobre as outras, parecendo exibir o esmero feminino das antigas moradoras. O pé de Oiti fazendo sujeira, fazendo sombra, fazendo coro às mangueiras, pés de eucalipto, a mata ciliar e as outras árvores que desconheço-lhes a graça, mas que sou grato pela canção das folhas nas tardes quentes sem televisão depois do almoço salgado, onde os pássaros faziam acordes cantando letras que faziam os males escorrerem pelo piso da sala, e o velho e sujo ventilador que tentava levar no vento a saudade de quem ficou no campo grande das nostalgias.


Ao lado direito, na esquina morava o ancião que nos temia, aliás, a impressão que tinha era de que a rua inteira nos temia e se entreolhava num ar de graça, circunspecção e desdém ao mesmo tempo enquanto passávamos.


À esquerda estava a outra metade da casa, com habitantes que de tão apagadas não merecem menção aqui; avançando ainda por este lado, estava a distinta, solitária e reclusa senhora que morava na casa que tinha uma antena parabólica (era a única da rua) grades altas e as paredes pintadas de uma cor que me lembra yogurte de salada de frutas. Pouco se sabia a seu respeito, aliás, pouco se via aquela magra senhora, exceto quando algum táxi a trazia e a levava sabe Deus de onde e para onde.


Ao lado desta morava minha vizinha preferida: uma senhora baixinha, morena, que parecia que o rosto que Deus lhe entregara já vinha com um sorriso embutido, daquele tipo que é capaz de te cumprimentar todas as vezes que se passa na calçada dela. Todo sagrado dia em que eu saia a passos rápidos de casa para o serviço ela estava lá, pronta a me dar um “bom dia”, segurando uma vassoura na mão varrendo as poucas folhas que se juntaram sob sua calçada durante a madrugada. E seu esposo, um senhor sisudo, discreto, sempre bem alinhado usando calça social clara sempre em algum tom que ou era bege ou cinza, camisa de manga curta com listras discretas entre azul e branco, óculos redondos e um chapéu de palha. Ele sempre fingia que não nos via, ao contrário de sua senhora, contudo, insistentemente o cumprimentávamos até que ele cedia e respondia com algum grunhido. É uma figura curiosa.


Todas as sagradas manhãs, perto da ponte, durante o movimento matinal de mães levando suas crianças para a escola e eu, indo trabalhar como muitos que por ali transitavam sem reparar na beleza do rio que corria ali debaixo, lá estava ele. Passeando sem pressa com as mãos nas costas, vez em vez parando, olhando para algum movimento curioso, olhando um grupo de meninos e meninas falando alto, ele observava os pássaros, olhando da ponte a pescaria dos que estavam ali desde a madrugada e, por uma vez o vi chutando com aquela simplicidade matuta uma garrafa plástica que estava no meio da praça, parecia dizer: “Isto não faz parte da natureza”.


Ao lado da casa deste casal singular estava a fruta onde heróica ladrava no quintal, e, adiante, uma casa que mais vivia fechada do que aberta e que de vez em quando aparecia um imponente geep azul estacionado a frente. Encerrando esta descrição da rua, na esquina estava a Câmara, de onde para a alegria dos vizinhos (ou não) de lá se podia ouvir o som que vinha lá de casa, vindo do aparelho de som que rompeu a monotonia e, diga-se de passagem, a tranqüilidade da casa (do quarteirão) quando compramos e trouxemos no braço aquele aparelho pesado: eu, Minínu, Sdrúxulo e Fanalha. Tudo para inaugurar tocando Mortification.


- Hoje eu vou dormir cedo...


- (risos)...Melhor seria se você não tivesse dito nada!!!


E era dito e feito! Esta frase dita por qualquer um dos que estivesse debaixo do teto daquela casa significava que três da manhã era o horário mínimo em que se ia dormir.


Às vezes dormíamos de madrugada, às vezes não dormíamos... fazendo o que? Bem, jogando bolas de tênis na parede, fazendo rinhas de formigas versus cupins no jardim da Igreja Matriz, jogando conversa fora, roubando placas, jogando videogame que, vivia conectado ao aparelho de som e cantávamos de cor todas as músicas que o game possuía, andando de skate ou ainda juntando dinheiro para comprar alguns biscoitos, algum suco, ou cozinhando na nossa culinária alternativa.


Até que o gás acabou e ninguém tinha sequer um tostão furado. Problema? Não! Não pra quem queria comer comida no fogão à lenha.



- Vamo na pizzaria?


- Vamo, mas vamo esdrúxulo!


E isso resultou em um indo a uma refinada pizzaria de cueca samba-canção, tênis amarelo, camisa azul e chapéu preto. Outro indo de coturno, bermuda de tactel e camisa regata, e o outro... bem... o outro era o Sdrúxulo mesmo.


Hagar, Alpiste, "Axé, Gordo!", alvo de chiclete, perrengues, caxaba, fanalhisses, sal e açúcar sem medidas, macarrão com canela, catupiri, pimenta, farinha, o Xan-Gô de Tianastácia, trielo, falta de crédito e mãos atadas ao que acontece longe - eles nos ensinaram que a distância mostra que você não tem o controle de tudo como pensava, que as melhores fases da vida passam rápido, e os melhores amigos (e primos) fazem parte desta fase. "Meu Maracatu pesa uma tonelada", mas não pesa mais que a bagagem que a terra das Araras grandes nos deu.


(Alex Sandro B. de Lima)



Urutau



“Versos tristes são aqueles quando tento escrever


sobre tentar escrever vesos.”


(Alex Sandro Bambil de Lima)





Urutau no canto torto,

Canhestro alado no canto desafinado;

Inerte, sombrio, absorto,

Amuado sob o tronco lascado.



Larga vez em vez esta voz...

Você não tem asas,

Expulsa esta lira atroz



Que cora a tez com rimas rasas.

Admiração e espanto solfejam seu canto noturno

É um pranto quando vê a estrela brilhar,



No trovão que esconde seu canto taciturno

Na chuva se lança no fel da lembrança de quem não está.



Canta assim para si mesmo,

Mesmo que seja a esmo,

Um verso tosco numa nota menor qualquer,

Na tempestade se desfazia sua epifania de mulher.



(Alex Sandro B. de Lima)