quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Quando ela chega




Quando Morana chega eu nem sempre vejo, mas sua presença é inconfundível.
Ela chega vestida de todas as cores, mas todas de uma só vez, convergindo no mais pálido preto.
Morana devagar, no canto do meu olho, repousou sobre a janela e eu fingi que não a via.
Li um livro, liguei os alarmes, fechei a TV, desliguei a janela mas ela vem se eu quiser ou não; fiz um café, li uma música, me fiz de ocupado - num dia de chuva escorrendo com preguiça, num dia de sol e flor lilás, sem avisar, ela vem - e quando ela voltou fazia calor.
Quando Morana chega úmida e lenta, me inunda cada poro, toma cada cor para si, no piso de calor respiro dolorido um sangue pálido, não tenho nem porta para bater e ser atendido, nem para bater atrás de mim, apenas uma porta que me bate na cara. O piso do calor vira constipação e sons azulados longínquos.
Quando ela chega, senta-se no canto do quarto, sempre muda, sempre dona do ar, da razão, da emoção. Mastigo um remédio amargo e me deito com gosto de areia na garganta, 15 felicidades de plástico numa cartela metálica.
Quando ela chega não fala e deixa, sob sua mira, qualquer palavra dentro do travesseiro. Quando Morana dorme comigo, a cama não é repouso, as costas não saem do lugar, os olhos escorrem sem esforço, sem cerimônia... quando ela dorme comigo, lençol é mortalha, sono é batalha, travesseiro é navalha. Nem ser, nem vivo.
Quando ela chega faz dos dias vadios, vazios, baldios. Ela sabe que estou quase pronto para viver sem comprimido e pra isso há repulsa, choro, preces, paredes, ódio e saliva. Às vezes ela vem só. Às vezes ela vem de vestido e gadanha. Às vezes vem só para fazer o melhor banquete ficar com gosto de isopor, às vezes só pra me fazer atrasar.
Minha autoestima, minha dignidade, minha alegria, cabem na palma da minha mão, mas não passam pela porta do quarto.
Ela me ameaça desabar o teto. Morana me pegou pela mão de noite, como uma mãe gentil, me conduziu, vi as águas turvas de cima, ela queria me à deriva quando de repente vi, no som surdo das águas batendo nas colunas, na face imunda das águas, duas flores que cintilam, dois doces de tirar amargo. E ela se foi, prometendo voltar, olhando de longe eu voltar com duas flores no peito que cintilavam esperança nos olhos.
Enquanto isso, luto para que luto seja apenas um verbo, sem saudade dela.

AlexSandroBambiL

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Não há perdão


Não há perdão
Para o amor insólito
Cotidiano insípido
Desgraçado cálido
Raiva de ímpeto
Não há perdão
Para o olhar pérfido
Para o adúltero de coração
Para o infeliz do crime
Para o sangue na mão
Não há perdão
Pra quem só deixa dúvida
Pro amor íngreme
Pro coração trôpego
Pra quem faz de seu amor último
Dor de sonâmbulo
Conversa de bêbado
Chega a ser física
A dor da traída
De um amor líquido
De um violão sem música
De um cálice pútrido
Não há perdão
Pra quem deixou
Um rastro fétido
De feridas vívidas
De morte sem antídoto
Não há perdão
Para um ser de miséria
Para a vergonha pública