Quando Morana chega eu
nem sempre vejo, mas sua presença é inconfundível.
Ela chega vestida de
todas as cores, mas todas de uma só vez, convergindo no mais pálido preto.
Morana devagar, no
canto do meu olho, repousou sobre a janela e eu fingi que não a via.
Li um livro, liguei
os alarmes, fechei a TV, desliguei a janela mas ela vem se eu quiser
ou não; fiz um café, li uma música, me fiz de ocupado - num dia de
chuva escorrendo com preguiça, num dia de sol e flor lilás, sem
avisar, ela vem - e quando ela voltou fazia calor.
Quando Morana chega
úmida e lenta, me inunda cada poro, toma cada cor para si, no piso
de calor respiro dolorido um sangue pálido, não tenho nem porta
para bater e ser atendido, nem para bater atrás de mim, apenas uma
porta que me bate na cara. O piso do calor vira constipação e sons azulados longínquos.
Quando ela chega,
senta-se no canto do quarto, sempre muda, sempre dona do ar, da
razão, da emoção. Mastigo um remédio amargo e me deito com gosto
de areia na garganta, 15 felicidades de plástico numa cartela metálica.
Quando ela chega não
fala e deixa, sob sua mira, qualquer palavra dentro do travesseiro.
Quando Morana dorme comigo, a cama não é repouso, as costas não saem
do lugar, os olhos escorrem sem esforço, sem cerimônia... quando
ela dorme comigo, lençol é mortalha, sono é batalha, travesseiro é
navalha. Nem ser, nem vivo.
Quando ela chega faz
dos dias vadios, vazios, baldios. Ela sabe que estou quase pronto
para viver sem comprimido e pra isso há repulsa, choro, preces,
paredes, ódio e saliva. Às vezes ela vem só. Às vezes ela vem de
vestido e gadanha. Às vezes vem só para fazer o melhor banquete
ficar com gosto de isopor, às vezes só pra me fazer atrasar.
Minha autoestima, minha dignidade, minha alegria, cabem na palma da minha mão, mas não passam pela porta do quarto.
Ela me ameaça
desabar o teto. Morana me pegou pela mão de noite, como uma mãe gentil, me
conduziu, vi as águas turvas de cima, ela queria me à deriva quando
de repente vi, no som surdo das águas batendo nas colunas, na face
imunda das águas, duas flores que cintilam, dois doces de tirar
amargo. E ela se foi, prometendo voltar, olhando de longe eu voltar
com duas flores no peito que cintilavam esperança nos olhos.
Enquanto isso, luto para que luto seja apenas um verbo, sem saudade dela.
AlexSandroBambiL