quarta-feira, 16 de abril de 2025

O beijo amigo é a véspera do escarro

 


Sofri sem saber dos segredos sutis,

destes que em lábios, silente, se escondiam.

Enquanto eu dedilhava esperanças febris,
teus olhos em outros abismos ardiam.

Doce o disfarce, denso e decorado,
mentiras de veneno e ventura.
Beijei o caos com afeto sagrado,
mas foste espelho em moldura impura.

Na dança dos dias, negaste-me o passo,
mas valsaste em vontades que eu nunca soube.
E eu, baixo trovador, trançava o laço
selava o silêncio que em ti coube.

Comparado fui – aos vultos vazios,
com quem dividias riso em segredo.
Fui porto fiel em mares sombrios,
foste nau sem leme, conduzida ao degredo.

Mentias com arte, com alma e ardil,
cada "lindo" tinha o peso de um espinho.
Por trás das telas, grito hostil,
e a paixão partilhada em outro caminho.

Agora sei: teu amor era enredo,
e eu mero coadjuvante em cena.
Mas que bela tragédia — viver este medo
de ser sincero, e ainda assim, tua pena.

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Pedra de Serrado


Fui mármore— hoje pedra lascada da serra,

teci meu afeto em seda e acordes dedilhados,
e vi teus olhos por outros se acender.

Comparaste-me a estátuas de atleta e aço,
a corpos esculpidos — vaidades rudes —
e o espírito meu, fugidio, sangrou até morrer.

Não vi beleza em espelhos partidos,
mas dei-te os cacos num gesto febril,
colheste espinhos onde pus jardim.

Dos lábios calmos, brotou o silêncio de sepulcro,
sorriste ao herói de músculos e fardas,
e eu — um poeta — tornei-me punhal.

Arde-me o peito, mas o pranto é gelo,
aprendi o escárnio e a sombra dos círios
de tanto implorar ao vazio.

Rocha da Serra de Maracaju, sem cor, sem enlevo,
meu canto de vinagre, meu toque de agosto,
e o que era nobre — jaz dormente e vil.

Elegia da comparação


Fui sombra num campo de aurora,

beijaste lembranças de mortos amores,

e eu, em silêncio, sangrei cada hora.

Ofereci um peito sem grades, sem dores,
mas preferiste retratos antigos,
olhos buscando passados rancores.

Na taça que dei, transbordavam abrigos,
mas cuspiste o vinho por ser tão sereno,
ânsia por mais altos, mais magros e ambíguos.

Foi sem punhal, sem veneno,
gestos que riem de mim—
um amor tão casto, lançado ao obsceno.

Me resta ser náufrago de um mar sem fim,
carrego no peito a cruz 
e no olhar, o luto de quem ama assim.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Doce

 

Doce sombra, da vida errante,
Trazes a luz dum céu já ido,
Mas eu, mendigo de um sonho distante,
Sou nada ao teu passo senão apenas perdido.

Foste a estrela que um dia cuidei,
Nos céus da juventude, tão descuidada,
Mas hoje, de longe, ao brilho olhei,
E vi-me cinza à luz encantada.

És canção renascida,
Eu sou silêncio que a dor consome,
Teu riso é chama, tua alma, vida,
E eu, pó, sem o brilho de um nome.

Adeus, doce que a vida esculpiu,
Não sou o abrigo que teu ser requer,
Baú é o pranto que em mim se ruiu,
Por ser tão menor do que és.